A Nossa Mistura Racial é tão Nociva Assim?

O atirador norueguês Anders Bhring Breivik, que matou 76 pessoas em um atentado à bomba em Oslo e em um tiroteio na ilha de Utoya, cita o Brasil ao menos 12 vezes no manifesto de mais de 1.500 páginas publicado por ele na internet horas antes das ações do dia 22 de julho de 2011. O texto de A European Declaration of Independence – 2083 (Uma Declaração de Independência Europeia – 2083, em tradução livre) afirma que a miscigenação presente no Brasil favorece à corrupção, à desigualdade social e à criminalidade. Breivik critica a miscigenação e cita o Brasil em algumas passagens, como exemplo de país em que a mistura de raças foi 'devastadora', gerando 'falta de produtividade'O dossiê ainda diz que a imigração massiva, a mistura racial e adoção por não europeus são uma ameaça a unidade dos cidadãos daquele continente. “Primeiramente, um país que tem culturas competitivas vai se dilacerar ou vai acabar como um país disfuncional, como o Brasil e outros países”.
No mesmo instante em que leio os trechos das declarações de Breivik sobre a miscigenação brasileira me vem na cabeça fragmentos de um samba de João Gilberto, composto por Haroldo Barbosa, intitulado"Pra que discutir com Madame". Diz a letra do samba:
"Madame diz que a raça não melhora/ Que a vida piora por causa do samba,/Madame diz o que samba tem pecado/Que o samba é coitado e devia acabar,/Madame diz que o samba tem cachaça, mistura de raça, mistura de cor,/Madame diz que o samba democrata, é música barata sem nenhum valor/". 
A partir daí comecei a formular alguns questionamentos. Será que todos os males do Brasil podem ser atribuídos á mistura racial que aqui existe? Será que a nossa formação étnica é responsável pela corrupção,  desigualdade social, preguiça e a criminalidade, traços marcantes do cotidiano brasileiro? Até que ponto nossa herança genética é determinante na atual composição do quadro socioeconômico do país? 
O geneticista Sergio Pena, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), é uma referência nacional na discussão da questão racial. Ele tem vindo a público com freqüência para mostrar como a visão da humanidade dividida em raças, cristalizada em parte da sociedade, é totalmente incompatível com as descobertas recentes da genética. No Brasil somos produto da intensa mistura de 3 raízes ancestrais - ameríndia, européia e africana - a nossa gente tem um dos maiores níveis de variabilidade genética do planeta. Na perspectiva essencialista ou tipológica, a raça é vista como um elemento inerente e fundamental que define holisticamente a pessoa. Nesse paradigma, o indivíduo não pode simplesmente ter a pele mais ou menos pigmentada, ou o cabelo mais ou menos crespo – ele tem de ser definido como “negro” ou “branco”, rótulo determinante de sua identidade. A pigmentação da pele e outras características superficiais, em vez de serem corretamente percebidas como pouco relevantes, sinalizam profundas diferenças entre as pessoas.
Esse tipo de associação fixa entre características físicas e psicológicas absolutamente não faz sentido do ponto de vista genético e biológico. O genoma humano tem cerca de 20 mil genes e sabemos que poucas dúzias deles controlam a pigmentação da pele e a aparência física dos humanos. Está 100% estabelecido que esses genes não têm influência sobre qualquer traço comportamental, intelectual ou físico, incluindo a predisposição a câncer de pulmão ou qualquer outro câncer.
A humanidade moderna emergiu uma única vez, na África, há menos de 200 mil anos. Assim, a história evolucionária humana é bem curta e a distribuição mundial de características genéticas é principalmente devida à dispersão, com um papel importante de deriva genética por efeitos fundadores sucessivos e seleção por adaptação a ambientes geográficos. Basicamente, a diversidade genética observável na Europa, Ásia, Oceania e nas Américas é meramente um subconjunto da variação encontrada na África.
Como bem disse o geneticista sueco Svante Pääbo, em uma perspectiva genômica somos todos africanos, morando na África ou em exílio recente de lá. Europeus são genealogicamente derivados de africanos e não há diferenças biológicas entre eles. Seja por que motivo for, tratá-los como sendo de espécies, subespécies ou “raças” diferentes é contribuir para racismo e discriminação.
O estudo coordenado por Pena constatou ainda que os brasileiros de diferentes regiões são geneticamente muito mais homogêneos do que se esperava, como consequência do predomínio europeu.“Pelos critérios de cor e raça até hoje usados no censo, tínhamos a visão do Brasil como um mosaico heterogêneo, como se o Sul e o Norte abrigassem dois povos diferentes”, comenta o geneticista. “O estudo vem mostrar que o Brasil é um país muito mais integrado do que pensávamos.”
A homogeneidade brasileira é, portanto, muito maior entre as regiões do que dentro delas, o que valoriza a heterogeneidade individual. Essa conclusão do trabalho indica que características como cor da pele são, na verdade, arbitrárias para categorizar a população. Além disso, promete ampliar a visão que se tem hoje sobre tratamentos médicos, muitas vezes diferenciados com base em critérios físicos.
A única maneira possível de conceitualizar cada brasileiro é no âmbito de sua individualidade, como um ser humano único em seu genoma singular genealogicamente mosaico e em sua história de vida. Portanto, as declarações do atirador norueguês a respeito da miscigenação brasileira denotam preconceito e, no mínimo, desinformação acerca das recentes descobertas no campo da genética, apesar da imprensa ter noticiado que Breivik é bastante provido intelectualmente. As críticas racistas contidas em seu manifesto devem ser vistas apenas como uma opinião de um assassino insano, paranóico, que defende posições de extrema direita. Só. Pra que discutir com Breivik?

Comentários

  1. Acho que a nossa mistura racial deveria ser o principio para a reflexão de pessoas que aqui ainda tem preconceitos.

    http://portalcognoscere.wordpress.com/

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