A Situação das Aves do Brasil

 
Alguns dos principais ornitólogos do país explicam a situção atual da nossa rica avifauna. Foto: siriema (Cariama cristata)


Um grupo de dinossauros carnívoros, bípedes e ágeis aparentado do famoso velociraptor deu origem a animais que estão entre nós até hoje. Toda vez que vir um pombo na rua, um frango em seu prato ou qualquer outra ave, você pode dizer que está diante de um descendente dos dinossauros. As aves são o único grupo de vertebrados naturalmente presentes em todos os continentes, tendo evoluído para ocupar praticamente todos os ecossistemas terrestres, das montanhas mais altas aos oceanos ─ onde pinguins podem procurar seu alimento a mais de 100 m de profundidade.
 O levantamento mais recente certifica a existência de 10.440 espécies de aves no mundo, o que exclui várias dezenas extintas desde 1600, após o início da expansão marítima europeia, e possivelmente outros milhares extintos por povos como os polinésios e ameríndios ao colonizarem ilhas no oceano Pacífico e no Caribe. É possível que apenas os polinésios tenham eliminado cerca de 2 mil espécies nos últimos dois milênios.
 O Brasil abriga ─ segundo a última lista do Comitê Brasileiro de Registros Ornitológicos (CBRO) 1.833 espécies de aves. Esse total certamente aumentará já que novas espécies de aves continuam a ser descobertas com regularidade (mesmo no entorno de capitais como São Paulo e Curitiba) e análises moleculares, morfológicas e bioacústicas demonstram que algumas “espécies” na realidade podem ser subdivididas em unidades evolutivas distintas.
Humanos de diferentes culturas sempre apreciaram aves de uma maneira não meramente utilitária, mas sim por que poder ver e ouvir esses belos animais é algo prazeroso. Milhões de aves cativas, tanto silvestres como raças criadas especialmente pelo seu canto ou cores, além de espécies inteiras levadas à extinção (como a famosa ararinha-azul Cyanopsitta spixii), são testemunho de nossa atração pelas aves e da estranha característica humana de encarcerar e mutilar o que ama.
 Mudanças culturais e a tecnologia têm permitido mudar essa relação. O passatempo da observação de aves dos cavalheiros europeus é uma das raízes da ornitologia moderna e continua com forte vertente científica, já que leva ao aprendizado de disciplinas como ecologia e sistemática. De fato, a fronteira entre o que é hobby e o que é ciência muitas vezes é incerta e é frequente que observadores de aves participem de pesquisas científicas e não são poucas as espécies que foram descobertas (ou redescobertas) durante excursões de bird-watching ou que localidades até então inexploradas foram primeiro visitadas por birders-cientistas.
 O voluntariado de observadores alimenta programas de monitoramento que têm sido usados inclusive para documentar consequências das mudanças climáticas. Exemplos são a Christmas Bird Count realizada à 111 anos nos Estados Unidos, a Big Garden Birdwatch britânica (que inclui muitas escolas com comedouros de aves em seus jardins – uma idéia para brasileiros) e o Censo Neotropical de Aves Aquáticas sul-americano, conduzido no Brasil.
A tecnologia tem uma grande influência no bird-watching. A atividade se popularizou nos países anglo-saxões no século XX graças a avanços tecnológicos que resultaram em binóculos e transporte mais baratos. Observar aves implica comumente em registrar suas vozes tanto para identificá-las como para atraí-las ( play-back) e as tecnologias de gravação, tratamento e produção de sons, evoluindo de pesados gravadores de rolo com microfones parabólicos nos anos 1980 para gravadores digitais com microfones direcionais super sensíveis, players capazes de estocar bibliotecas sonoras inteiras e mini amplificadores de grande potência no século XXI.
 No Brasil, onde o acesso a equipamentos e literatura sempre foi dificultado, tivemos que esperar pela revolução digital e a disponibilização de câmeras digitais e formas rápidas e baratas de compartilhar imagens e informações. A rápida expansão do bird-watching no Brasil é um fenômeno tecnológico que acontece na mesma medida em que mais pessoas têm mais acesso a equipamentos fotográficos digitais de boa qualidade, softwares para tratamento de suas imagens e redes sociais e websites para compartilhamento de informações, fotos e sons.
 Arquivos baseados na web hoje complementam coleções científicas convencionais. Por exemplo, o Xeno-canto é um dos maiores arquivos de sons de aves do mundo e um repositório utilizado tanto por amadores como por cientistas que ali armazenam seus “espécimes” e podem examinar e utilizar os de outros colaboradores, em um belo exemplo de ciência colaborativa.
 No Brasil um dos exemplos mais fascinantes da relação tecnologia-observação de aves é o Wikiaves  onde mais de 6.600 mil colaboradores, de cientistas na ativa a senhoras aposentadas armazenam fotos e sons de aves indicando informações como localidade, data, comportamento, entre outras, tornando o site uma fonte preciosíssima de informações sobre aspectos como distribuição de espécies, variação geográfica, sazonalidade e até mesmo variações nos tamanhos populacionais. Como uma coleção científica convencional, porém muito mais dinâmica.

O Desafio para a Conservação das Aves

O crescente número dos observadores-fotógrafos de aves exerce um papel muito importante para a conservação das aves brasileira. Esse é um publico qualificado que pode ser, por exemplo, um dos melhores amigos das nossas áreas protegidas, além de promover a conservação de áreas particulares. No entanto, ao mesmo tempo que a observação, interesse e o conhecimento em relação as aves vem crescendo, os impactos que ameaçam nossa rica avifauna também vem aumentando. Por volta de 10% de todas as espécies de aves globalmente ameaçadas estão no Brasil e muitas correm risco de extinção eminente. De acordo com a lista da IUCN (International Union for the Conservation of Nature) o Brasil é o país com maior número de espécies de aves ameaçadas de extinção, com um total de 123 espécies que sofrem risco real de desaparecer da natureza num futuro não tão distante. Em relação à lista nacional de aves ameaçadas, um total de 160 táxons são considerados, no entanto a lista brasileira também considera as subespécies ameaçadas, o que em parte explica as diferenças em relação a lista global.
 O número de aves ameaçadas é bastante variado entre os seis grandes biomas brasileiros (Amazônia, Caatinga, Cerrado, Pantanal, Mata Atlântica e Pampa). A Mata Atlântica concentra cerca de 80% de todas as aves ameaçadas no país, resultado de muitos anos de exploração e desmatamentos. Atualmente restam apenas cerca de 11% da floresta original, sendo que essa proporção de floresta remanescente não é homogênea ao longo de toda Mata Atlântica. A situação é mais séria na região nordeste, especialmente nos estados de Alagoas e Pernambuco onde a maior parte da floresta original foi substituída por plantações de cana-de-açucar, sobrando apenas poucos fragmentos de mata preservada. É nessa região onde ainda podem ser encontrados os últimos exemplares das aves mais raras em todo o país, como o Criticamente Ameaçado Limpa-folha-do-nordeste (Philydor novaesi). Essa pequena ave (18 cm) vive no estrato médio e dossel de florestas bem conservadas e ricas em bromélias, onde procura artrópodes dos quais se alimenta. Atualmente as duas únicas localidades onde a espécie pode ser encontrada são na Estação Ecológica de Murici (Alagoas) e na Serra do Urubu (Pernambuco). Felizmente ambas as áreas estão oficialmente protegidas por unidades de conservação (Estação Ecológica e Reservas Privadas – RPPN). O Mutum-do-nordeste (Pauix mitu) também ocorria nas matas dessa região do nordeste, essa espécie, porém, já foi extinta na natureza, restando apenas indivíduos mantidos em cativeiro que representam a esperança de um dia poderem ser reintroduzidos nos fragmentos florestais remanescentes.
 Situações graves de perda de vegetação original também ocorrem no Cerrado e no Pampa, onde agricultura, pecuária e plantações de árvores exóticas estão em acelerada expansão. No caso da Amazônia a situação ainda não é muito séria e apesar das crescentes taxas de desmatamentos, cerca de 83% da floresta ainda permanece preservada.
Em um país como o Brasil, com dimensões continentais e situações de conservação bem distintas entre os biomas, processos de priorização para planejamento de conservação são de extrema importância servindo como um guia para direcionar os recursos para as áreas ou espécies que necessitam de ações imediatas para assegurar a sua conservação. A BirdLife International desenvolveu uma metodologia de identificação de áreas prioritárias para a conservação conhecida como “Áreas Importantes para a Conservação das Aves” ou IBAs, sigla de Important Bird Areas, sua denominação em inglês. As IBAs são declaradas como tal se apresentarem uma ou mais das seguintes características; 1- presença de espécies globalmente ameaçadas de extinção; 2- presença de espécies de distribuição geográfica restrita (menor que 50.000 km²); 3- presença de espécies endêmicas de biomas; 4- presença de grandes concentrações - maior que 1% da população mundial ou maior que 20.000 indivíduos em áreas de alimentação ou reprodução. O programa global de IBAs visa assegurar a conservação em longo prazo de uma rede de áreas criticamente importantes para as aves. No Brasil, o processo de identificação das IBAs foi liderado pela Sociedade para a Conservação das Aves do Brasil (SAVE Brasil) e resultou no mapeamento de 237 áreas, representando 11% do território brasileiro ou cerca de 94 milhões de hectares. O trabalho de seleção dessas IBAs foi bastante participativo e envolveu um total de cerca de 60 biólogos/ornitólogos, 450 áreas analisadas e 700 espécies consideradas para aplicação dos critérios. Em relação ao status de conservação, apenas 29 % (27 milhões de hectares) dessas áreas se encontram oficialmente protegidas na forma de unidades de conservação de proteção integral. Diante desse “déficit” em áreas protegidas, um dos trabalhos da SAVE Brasil é a articulação junto aos órgãos ambientais do governo para a criação de novas unidades de conservação em áreas de IBAs. Nos últimos anos esse esforço resultou, juntamente com o envolvimento de outros parceiros, na criação da RPPN Pedra d’Anta (PE), Estação Ecológica de Murici (AL), no Parque Nacional e Refúgio de Vida Silvestre de Boa Nova (BA), Parque Nacional da Serra das Lontras (BA) e Parque Estadual da Costa do Sol (RJ). Essas áreas somadas representam 57.000 hectares de florestas protegidas, garantindo a conservação de cerca de 500 espécies de aves, sendo 25 ameaçadas de extinção.
 Um dos maiores desafios enfrentados atualmente no Brasil para a conservação das aves e toda a biodiversidade do país é a conciliação de um desenvolvimento e crescimento sócio-econômico aliado a conservação ambiental. Ainda não se conhece o melhor caminho a ser seguido e nem as soluções para muitos dos conflitos, no entanto já existe uma clara preocupação da sociedade em geral com as questões ambientais. Em alguns casos essa preocupação se reflete em ações concretas como a criação de novas unidades de conservação públicas e privadas (RPPNs), mecanismos econômicos de valorização da floresta em pé e biodiversidade, licenças ambientais bastante restritas para implantação de novos empreendimentos, organizações não-governamentais (ONGs) comprometidas, atuantes e bem articuladas com o governo e uma massiva atenção da mídia ao assunto.
 Se nos próximos anos vamos conseguir reverter o triste quadro em que o Brasil se encontra como recordista mundial em número de aves ameaçadas, ainda não sabemos, porém o maior interesse da sociedade pela nossa rica avifauna, juntamente com ações concretas como a criação de novas áreas protegidas representa avanços concretos nesse sentido.
Por Pedro F. Develey; Fabio Olmos; Vagner Cavarzere (adaptado) para a Scientific American Brasil

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