Como a Cracolândia Explica o Brasil

Ex-secretário de Justiça do governo Dilma, Pedro Abramovay critica a ação do governo de São Paulo na cracolândia 

Pedro Abramovay, professor de direito penal e de violência e crimes urbanos na Fundação Getulio Vargas (RJ), ocupava a Secretaria Nacional de Justiça do recém-empossado governo Dilma, subordinada ao Ministério da Justiça. Mas bateu de frente com o ministro José Eduardo Cardozo ao defender o fim da prisão para pequenos traficantes. Desautorizado, deixou o cargo três semanas após assumi-lo, aos 31 anos.
Sobre a ação conjunta desencadeada em janeiro passado pelos governos municipal e estadual de São Paulo na região da cracolândia, centro da capital, focada sobretudo na ação repressiva, Abramovay foi categórico ao afirmar: “Isso é enxugar gelo”. Além disso, Abramovay,  acredita ter havido uso eleitoral do episódio. 
Em entrevista para a Revista Cult (edição 165), ele também ataca a falta de uma política pública consistente para drogas no país, mas elogia a atitude do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que tem assumido “posturas mais críticas” sobre o tema. Sobre a internação compulsória de viciados, ela só deve ocorrer, diz, em casos específicos – caso contrário, “pode se tornar uma política de internação da pobreza”.
Abramovay ao avaliar a ação do Estado na cracolândia em São Paulo, afirma: " Ela cometeu erros muito graves. O principal deles foi a utilização da polícia como principal instrumento. Qualquer política pública tem que estabelecer seu objetivo de maneira clara, seja porque é a única maneira de haver políticas eficientes, seja porque só assim a população pode compreender e avaliar o que o poder público está fazendo.
Qual é o objetivo da polícia na cracolândia? Lidar com o problema do crack? Garantir a segurança dos comerciantes da região? Revitalizar o centro? Pelas declarações das autoridades, não dá para compreender, pois todas essas justificativas se misturam. E as ações, na verdade, não enfrentaram nenhum desses problemas.
Do ponto de vista da segurança pública, a ação é um erro porque as experiências internacionais mostram que o foco no usuário e no pequeno traficante é completamente equivocado – não diminui a violência ligada ao tráfico e muito menos a oferta de drogas. É um trabalho de enxugar gelo; mas não é inócuo, pois causa danos à possibilidade de tratar o tema pelo lado da saúde pública.
Do ponto de vista da política de drogas, também é um desastre. Afinal, a ação que tem a polícia como principal ator impede a abordagem de agentes de saúde e assistentes sociais."
Ao ser perguntado se houve uso político do episódio, em razão das eleições municipais deste ano, Abramovay respondeu: " Isso sempre acontece quando se fala de política sobre drogas, pois os políticos sabem que qualquer posição dura contra elas traz dividendos. Mesmo que seja ineficiente e provoque sérios danos às pessoas.  Há e sempre houve um debate sobre o centro de São Paulo, entre aqueles que acreditam que sua revitalização passa pela expulsão de toda a população de baixa renda da região e aqueles que defendem que é possível revitalizá-lo com essas pessoas, de forma inclusiva.
A atual gestão da prefeitura, desde o governo Serra, tem uma posição muito clara de promover políticas de urbanização excludentes. E a ação na cracolândia é absolutamente coerente com essa postura."
Ao comentar sobre o papel da mídia no episódio, o ex-secretário expôs a seguinte situação: "Ela tem um papel bastante complicado em relação ao tema das drogas, mas há que se reconhecer que o debate está se tornando mais aberto. Nos últimos anos, vários jornais, sobretudo após a tomada de posição do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, têm assumido posturas mais críticas.
Mesmo no caso da cracolândia, comparativamente com outros momentos, acho que a visão da mídia foi razoavelmente crítica. Mas talvez não houvesse mesmo como defender uma postura tão truculenta e irracional." E acrescentou: " Não existe política pública legítima se não houver o convencimento da população. E, em segurança pública, mais especificamente no caso de drogas, os agentes políticos costumam buscar essa legitimidade por meio de respostas imediatistas.
O objetivo de uma política sobre drogas é melhorar o acesso à saúde dos cidadãos e diminuir a violência, mas esses objetivos nunca são alcançados e nem sequer mencionados nas avaliações. Sempre que se avalia a política repressiva são apresentados indicadores de processo, e não de cumprimento do objetivo. Apresentam-se a quantidade de drogas apreendidas e o número de presos (quando não o de mortos), e isso não quer dizer nada se não houver diminuição da violência e do consumo."
Qual é a melhor estratégia para lidar com o crack? Em que ela deve se diferenciar daquela usada com outras drogas? Perguntou o entrevistador da revista ao ex-secretário. E Abramovay respondeu da seguinte forma: 
" O crack como substância tem problemas muito similares aos de outras drogas pesadas. Do ponto de vista da dependência química, ele é, segundo os médicos, mais fácil de ser tratado do que outras, como o álcool, por exemplo. A grande questão é o fato de ser muito barato e haver entrado de modo muito perverso nas camadas mais excluídas da sociedade. E é essa combinação de exclusão e droga pesada que produz resultados tão chocantes.
Por isso, a política para o crack em tal contexto de miserabilidade – e é importante frisar que esse não é o único contexto, há uso de crack na classe média também – deve conseguir aliar políticas de assistência social e políticas de saúde. Elas precisam compreender que o usuário deve ser, na medida do possível, tratado dentro do seu contexto. A internação é um instrumento, mas nunca a regra. Pelo contrário, ela cria uma situação artificial e muitas vezes desestrutura ainda mais a vida do paciente.
É claro que há casos em que isso é necessário, mas são minoria. Os casos internacionalmente reconhecidos como exitosos são aqueles que privilegiam o atendimento ambulatorial e que conseguem reduzir os danos do uso – e, quando possível, retiram a droga da vida da pessoa sem retirar a pessoa de sua própria vida."
Sobre a  internação compulsória dos dependentes Pedro Abramovay fez os seguintes comentários: "Ela é muito complicada, pois admiti-la como parte da política pode, sem dúvida, abrir espaço para a violação de direitos humanos, porque uma política depende muito de quem a implementa. Se um prefeito decide colocar a internação compulsória como foco, ela pode se tornar uma política de internação da pobreza. Não dá para não pensar na metáfora de Machado de Assis – a internação compulsória pode levar todos à Casa Verde [hospício criado por Simão Bacamarte em “O Alienista”].
É claro que há situações em que pode ser necessário internar alguém que não consiga externar sua vontade. Mas, de novo, esses casos são realmente exceções.
Não parece anacrônico o recente debate sobre a liberalização da maconha em um momento em que drogas mais pesadas e viciantes, como o crack, se alastram pelo país? Acho que parece anacrônica uma ação como a da cracolândia, em um momento em que o mundo todo está adotando posturas críticas às políticas repressivas, quando [até] o presidente da Colômbia [Juan Manuel Santos Calderón] pede que se descriminalizem as drogas.
Com relação à maconha, acho que, se for possível estabelecer um consenso regulatório mais inteligente que o atual, seria interessante. O que não faz sentido é mantermos a atual política repressiva, que prende pessoas que nunca praticaram um ato de violência e aproxima os jovens do crime organizado.
Além disso, a criminalização faz com que políticas de prevenção e saúde adequadas não possam ser implementadas. Não é por acaso que a única droga de que se conseguiu reduzir o consumo por meio de políticas públicas foi o cigarro, que é uma droga legal."

Fonte: Adapatado de matéria da revista Cult  Ed. 165 intitulada "Crack e Tabu"

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