E a Ciência Passou em Branco...

Um dos momentos mais esperados na abertura da Copa do Mundo no Brasil, que foi o pontapé inicial dado por paraplégico em exoesqueleto criado pela equipe do neurocientista Miguel Nicolelis, é quase ignorado no estádio e passa poucos segundos da TV

Copa do Mundo é isso mesmo: expectativa, emoção, vibração, entusiasmo, euforia. Todo mundo fica aguardando o momento em que a bola rola no gramado do estádio para então começar a maior festa do futebol mundial. E a Copa do Mundo de 2014 no Brasil prometia mais: a ciência entraria em campo e daria um pontapé inicial para o futuro da humanidade. Na ocasião da abertura, um jovem paraplégico usando um exoesqueleto robótico controlado diretamente pelo cérebro, levantaria de sua cadeira de rodas, caminharia alguns passos e daria um simbólico "chute inaugural" da competição. Pelo menos este era o plano traçado pelos cientistas do projeto  "Andar de novo", encabeçado pelo brasileiro Miguel Nicolelis, professor da Universidade Duke, nos Estados Unidos, e do Instituto Internacional de Neurociências de Natal – Edmond e Lily Safra (IINN-ELS).

Acontece que o espetáculo futebolístico falou mais alto do que a novidade científica e a Fifa resolveu mudar tudo em nome da apoteoso triunfal do evento esportivo de proporções mundiais. E o que era para ser apresentado como um grande feito da ciência ficou reservado a míseros segundos de exibição na televisão. Na realidade, muitos ficaram decepcionados com a apresentação do exoesqueleto criado pela equipe de Nicolelis. 
A assessoria de imprensa da Fifa disse à Folha que concedeu 30 segundos para a demonstração do exoesqueleto batizado de BRA-Santos Dumont 1, “e isso foi cumprido”. Em entrevista ao Jornal Nacional, Nicolelis disse que a demonstração foi executada em 16 segundos. Rebatendo a crítica feita por Nicolelis numa rede social, a Fifa disse também que não garantia exibir o evento  na íntegra pela TV, pois isso “não dependia da federação”.
E por que o exoesqueleto estava em uma extremidade do campo e não no centro do gramado? Segundo o Comitê Organizador da Copa do Mundo, ficou decidido que este 'pontapé inicial' será realizado fora do campo de jogo, para não prejudicar o gramado por causa do peso do equipamento.
De todos os comentários que li sobre o assunto, o que eu achei mais perspicaz foi o que li no "Observatório da Imprensa", publicado em 15 de junho, intitulado "A Metáfora do Exoesqueleto". O texto é de Luciano Martins Costa e nos dá uma ideia precisa de como a mídia se sobrepõe as fatos científicos, jogando-os deliberadamente para o escanteio. Separei alguns trechos da matéria.
"A celebrada experiência conduzida por Nicolelis, que prometia fazer o jovem andar com a ajuda de um complicado aparelho ortopédico movido por ondas cerebrais, passou despercebida pela maioria dos espectadores que, na arena do Corinthians ou diante das telas, acompanhavam a festa de abertura da Copa do Mundo.
Num canto do gramado coberto, o jovem que envergava a armadura eletrônica produziu um discreto movimento com a perna direita, fazendo a bola rolar por uma rampa."
"Essa cena deveria ser a expressão mais espetaculosa e a consagração pública do projeto que custou, até aqui, cerca de R$ 30 milhões. No contexto do espetáculo, a experiência equivale a quase nada, porque a imagem, por si, nada esclarece. Comparado à expectativa que se criou em torno do experimento, alardeado meses antes pela imprensa, foi um fracasso em termos de comunicação. A falta de explicações sobre como a coisa funciona, na narrativa dos locutores da televisão, esvaziou o interesse do público.
A ideia de fazer pessoas com paralisia recobrarem o controle de seus movimentos por meio de um aparelho que tenta realizar, por fora do corpo, as funções do esqueleto e do sistema nervoso, tem provocado polêmicas no mundo científico. Além disso, o excesso de exposição do coordenador do projeto acabou por transformá-lo em celebridade midiática e, como sabem muito bem os estudiosos da mídia, a condição de celebridade costuma encobrir todas as qualificações anteriores do personagem: o público passa a reconhecer a figura, mas seus méritos anteriores ficam em segundo plano.
Pode-se dizer que, quanto mais famoso fica o cientista, menor será o valor que lhe será dado como cientista. Na TV Globo, a emissora com a maior audiência, o narrador Galvão Bueno tinha um de seus ataques de verborragia quando a cena aconteceu, e se viu alertado pela direção a chamar a imagem de volta para fazer sobre ela um emocionado improviso. E, em vez do grand finale anunciado por meses, aquilo que deveria ser o coroamento de uma suposta conquista científica se perdeu no meio da festa.
O episódio, pinçado pelo observador no meio do extenso e intenso conjunto de notícias e opiniões que acompanham a abertura da Copa do Mundo no Brasil, serve como ilustração da circunstância em que se encontra a mídia tradicional no contexto da sociedade hipermediada.
Desprendida do núcleo da sociedade a que deveria servir, a mídia funciona como um esqueleto exterior ao corpo social, tentando fazer com que o organismo caminhe na direção que ela deseja. A relação da imprensa com o público lembra aqueles programas de auditório, onde assistentes erguem placas para a plateia, dizendo: “palmas”, “gritos”, “gargalhadas”. Agora, “festa”, “vaias”, “inflação”, “proteste”, “vote neste candidato”.
Mas não existe exoesqueleto capaz de fazer a sociedade andar numa mesma direção."
Apesar de tudo, o blog Gene Repórter assinala, muito apropriadamente, que o noticiário internacional registrou e destacou o chute dado com o exoesqueleto. Confira na postagem O criptoesqueleto da Copa: não é só pelos 3 segundos #robocopa

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