A Redenção do Vira-Lata

O cão vira-lata brasileiro é resultado de séculos de adaptação ao território e aos movimentos populacionais, conforme um estudo publicado na Revista de História da Biblioteca Nacional

Não foram os homens que escolheram amansar os caninos; estes que decidiram viver perto dos homens. Por isso, a história da domesticação dos cães é totalmente diferente da de todos os outros animais. Os estudiosos debatem duas hipóteses para o local do surgimento dos cães. A versão mais tradicional  diz que, há cerca de 40 mil anos, grupos de lobos (Canis lupus) que viviam no Leste Asiático perceberam que poderiam obter alimento mais facilmente seguindo os humanos. Isso porque  caçadores-coletores viviam se deslocando e deixando para trás um nutritivo lixo, composto de restos de ossos, cartilagens e alguns resíduos de carne. Mas um estudo do DNA de cães e lobos , publicado na revista Nature em março deste ano, indica o Oriente Médio como o lugar mais provável do surgimento do Canis lupus familiaris, nosso cão doméstico.
Esses lobos , por volta dos 15 mil anos atrás, acabaram entrando em contato direto com os homens , foram convencidos da utilidade desses animais e passaram a escolher para seu convívio os filhotes menos assustados  e que mantinham durante a vida características mais juvenis. Assim, ao longo dos milênios, foram selecionados os indivíduos mais amigáveis, mas também os mais adaptados biologicamente ao convívio humano.
Essa relativa facilidade de adaptação dos cães às necessidades do homem tem relação com um fato biológico: eles são um sucesso reprodutivo. A cada ninhada nascem vários filhotes, que podem ser de pais diferentes. Isto garante a esses animais uma grande variação genética. Nosso cão doméstico, portanto, não é uma espécie diferente do lobo, mas uma subespécie que é biologicamente adaptada  ao contato com pessoas. E quando chegaram ao Brasil , trazidos pelos europeus no século XVI, eles continuaram a mostrar uma capacidade extraordinária de ajustamento às necessidades que lhes impusemos.
Os nativos, é claro, notaram as vantagens  de uma aliança com os cães, o que começou a ocorrer  ainda no século XVI, com a ajuda dos jesuítas.  Segundo o ecólogo Evaristo Eduardo de Miranda , o cachorro foi o primeiro mamífero doméstico entre os grupos indígenas do Brasil, por conta da sua utilidade para avisar sobre a aproximação de estranhos e, naturalmente, para atacar seus inimigos. Mais tarde, foram usados com o companheiros de caça, o que não impediu que também servissem de alimento - o que ainda ocorre.
No Brasil, ao longo de 500 anos, a capacidade de adaptação ao espaço e às necessidades acabou criando um tipo robusto, muito resistente a várias doenças, inteligente e absolutamente moldável às mais diversas situações. Encontrado nas casas e nas ruas, este cão sabe, como nenhuma outra raça, se aproximar dos humanos, oferecendo sua companhia, como seus mais antigos ancestrais , e aprendendo com notável rapidez o significado de muitas das nossas palavras e gestos. Nós o conhecemos como vira-lata.
Capaz de se submeter a qualquer tipo de dieta, alimentando-se de restos e transformando todo tipo de matéria  orgânica em comida, resistindo às intempéries, capaz de viver no campo e na cidade, o vira-lata se espalhou pelo território com grande rapidez e facilidade. Econômico  e ágil, este cão sem raça definida , ou SRD, guarda características muito utéis dos seus ancestrais  e que foram perdidas por seus parentes "de raça pura". Entre outras coisas , possui grande variabilidade sonora, podendo uivar, ganir, rosnar, além de outros sons que foram retirados de muitos cães por conta da seleção artificial à qual foram submetidos.
Um dos seus sentidos mais apurado é o olfato. Presente em grande quantidade nos centros urbanos do país, o vira-lata pode identificar com muita facilidade qualquer material orgânico em meio ao que descartamos- seu olfato é seletivo, ou seja ele consegue isolar os odores mais ínfimos que vêm das lixeiras, habilidade secular que lhe rendeu o simpático apelido. 
Carregando um nome muitas vezes usado como menosprezo, nosso vira-lata tem demonstrado, ao longo dos séculos , fidelidade, inteligente e disposição para viver e trabalhar na companhia do homem, sempre com a indisfarçável alegria de um rabo balançando. Talvez seja o caso de mudar o valor da expressão "complexo de vira-lata", atribuída pelo dramaturgo e jornalista Nelson Rodrigues, em tom pejorativo, ao caráter nacional.

Por Rodrigo Elias (adaptação) para a Revista de História da Biblioteca Nacional - edição nº60 de setembro 2010, sob o título de "A Domesticação do Homem".

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