O Vampiro É Nosso

O famoso mito do conde Drácula se baseia em um personagem real: o príncipe Vlad III, que viveu no século XV na região da Valáquia (atual Romênia). O livro sobre ele foi escrito em 1897 pelo irlandês Bram Stoker e foi um dos principais responsáveis  pela divulgação da imagem do vampiro associada ao morcego hematófago. Drácula  foi inspirado em Vlad Tepes, senhor feudal que, assim como esses animais, gostava de sangue. Conhecido como Vlad, o Empalador, foi um perseguidor feroz dos muçulmanos e reservava aos seus inimigos capturados um ritual macabro: empalava e bebia o sangue dos derrotados.
O curioso é que os vampiros sempre foram retratados como figuras misteriosas que, à noite, transformavam-se em morcego e saía voando por aí em busca de sangue. Se o Drácula original viveu na Europa daqueles tempos, transformar-se em morcego só lhe renderia refeições à base de frutas. As espécies hematófagas, que se alimentam exclusivamente de sangue, só existem nas Américas do Sul e Central. Portanto, não eram conhecidas quando foi espalhada a história do conde sanguinário.
É bem verdade que esse animal era considerado figura de mau agouro em toda a Europa, provavelmente por causa de sua aparência e de seus hábitos noturnos. Como teria sido a reação dos primeiros viajantes europeus ao se depararem, no Novo Mundo, com uma família de morcegos que, como fator agravante, se alimentava de sangue? É o que nos conta o artigo "Brasil, o pai do vampiro" que saiu na edição nº 85 de outubro de 2012 da  Revista  de História da Biblioteca Nacional. O texto que se segue foi retirado do artigo.
"Segundo Gonzales Fernándes de Oviedo, em seu Sumário de La Natural Historia de Las Índias (1514), feito a partir de observações acerca da geografia, de animais e plantas nas Índias Ocidentais – a América Central –, alguns cristãos morreram 'picados' por morcegos e muitos outros adoeceram gravemente. Esses morcegos atacavam as pessoas mordendo-as na ponta do nariz e dos dedos das mãos e dos pés. Apesar de todo o alarde de Oviedo, o ferimento causado por esses morcegos não pode provocar a morte de um ser humano. Embora possam ficar até 25 minutos sugando o sangue de um humano, e sua saliva seja altamente coagulante, a incisão que fazem é tão pequena que o sangue não verte em quantidade suficiente para causar uma hemorragia grave.
Provavelmente, as 'vítimas fatais' do morcego hematófago descritas por Oviedo sofreram de infecções secundárias devido à falta de assepsia. Também podem ter sido os primeiros casos de raiva registrados no Novo Mundo, pois o vírus rábico é passado pela saliva de mamíferos infectados. O vírus tem um período de incubação que varia de acordo com o local onde penetra, com a proximidade entre a ferida e os troncos nervosos, com a quantidade inoculada e com a forma como o animal responsável pelo ataque se contaminou. O período de incubação mais frequente é de um a dois meses, mas ele pode variar de seis dias até um ano ou mais.
Oviedo registra também as providências tomadas pelos índios mexicanos do século XVI quando eram atacados por morcegos. O doloroso método defendido pelos nativos era a cauterização dos ferimentos por meio da brasa em fogo, o que impede a ocorrência de infecções secundárias. Alternativa menos dolorida seria lavar o local da ferida, procedimento até hoje adotado em mordeduras de animais, tanto para evitar infecções quanto para diminuir a quantidade de vírus inoculada. A questão, portanto, permanece: se não havia possibilidade de morrerem por hemorragia ou por infecções causadas por mordida de morcego, teriam realmente perecido de raiva os companheiros de Oviedo?
Muitos viajantes que passaram pela América portuguesa também relatam a ação vampiresca no continente. Jean de Léry, missionário suíço, em sua obra História de uma viagem feita na terra do Brasil (1578), afirma que os índios encaravam essas visitas noturnas com naturalidade, e quando ele próprio foi atacado, detalhou os efeitos sentidos: 'Durante dois ou três dias, senti dificuldade em calçar-me por ter ofendida aextremidade do dedão, embora não fosse grande a dor'. Ao indicar que o incômodo causado pelos morcegos não era tão grande, Léry corrobora o depoimento do mercenário alemão Hans Staden, que em 1557 descreveu os morcegos como seres que 'voam de noite nas cabanas e em torno das redes em que dormem as pessoas. (...) Quando estava entre os índios, arrancavam-me muitas vezes um pedaço dos artelhos. Quando acordava, via os dedos sangrando. Mordem os selvagens, porém, habitualmente na testa'."
"Mas a má fama dos morcegos já estava consolidada muito antes da descoberta das espécies hematófagas do continente americano. No Antigo Testamento, segundo a lei de Moisés, o morcego é um animal impuro, símbolo de idolatria e pavor. Nas tradições alquimistas, era entendido como um ser híbrido, mistura de rato e pássaro que, por esta ambivalência, seria representante dos demônios. Tais interpretações são confirmadas pela rica iconografia das figuras demoníacas na história do Ocidente. Afinal, qual demônio não tem nas costas asas que lembram as de um morcego? O conde de Buffon, estudioso do mundo natural no século XVIII, chega a chamá-lo de um 'ente-monstro'. Na América, entre os índios tupis-guaranis, o morcego era signo do terror, e entre os tupinambás, o fim do mundo seria precedido pela desaparição do Sol, devorado por um morcego."
"No Brasil existem 126 espécies de morcegos, mas apenas as do gênero Desmodus são consideradas nocivas ao homem, justamente por serem hematófagas. São frequentes as propostas para que se exterminem essas espécies, como única solução para os problemas causados à saúde humana e aos animais domésticos. Pastas vampiricidas são facilmente encontradas à venda. Mas esse processo de extermínio também elimina outras espécies de morcegos, que, além de não causarem problemas aos animais domésticos, executam importante manejo no controle de insetos, na polinização e na dispersão de sementes.
Ainda hoje, ao se discutir a presença do morcego na natureza, surge a questão: útil ou inútil? Benéfico ou nocivo? Estes questionamentos, apesar de equivocados, sempre acompanharam as espécies que interferem de algum modo na sobrevivência humana."
"A verdade é que, desde a chegada do europeu ao Novo Mundo, no século XVI, a fauna e a flora americanas têm sofrido danos irreparáveis, e se o morcego hematófago hoje ataca o gado, as galinhas e as ovelhas, ou se reproduz ostensivamente, é porque seus habitats foram depredados. A solução passou a ser controlar uma espécie considerada nociva graças, em grande parte, à ação do próprio homem. Não só pela ocupação e uso das terras, mas também pelo cultivo, no imaginário coletivo, de monstros e demônios em forma animal."
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