A Ação Prionóide da Proteína P53

Pesquisadores da UFRJ sugerem que parte dos casos de câncer seja desencadeada pelo mesmo mecanismo molecular que está por trás da doença de Creutzfeldt-Jakob, a versão humana do mal da vaca louca

Em um artigo publicado em junho de 2013 na Bioscience Reports, o bioquímico Jerson Lima da Silva da UFRJ e seus colaboradores, formularam a hipótese de que ao menos parte dos casos de câncer seja desencadeada pelo mesmo mecanismo molecular que está por trás da doença de Creutzfeldt-Jakob, a versão humana do mal da vaca louca, que causa a morte celular precoce e deixa o cérebro poroso feito uma esponja. 
Tanto no câncer, marcado pela perpetuação da vida das células, como na doença de Creutzfeldt-Jakob, em que a morte celular é antecipada, a origem do problema seria a mesma: o enovelamento anormal de uma proteína. Pode parecer uma causa sutil demais para estragos tão grandes. Mas, acreditam os pesquisadores, faz sentido. Afinal, é a estrutura tridimensional dessas moléculas grandes e complexas, fundamentais para definir a estrutura e o funcionamento das células, que determina o papel que vão desempenhar. Quando o enovelamento dá errado, as proteínas em geral deixam de funcionar como deveriam e até ganham funções extras. A diferença entre os casos de câncer e os de Creutzfeldt-Jakob estaria na proteína afetada.
Nas formas de câncer analisadas pelo grupo da UFRJ, a deformação atinge a p53, proteína que já foi chamada de guardiã do genoma por coordenar a reparação do DNA no caso de pequenos danos e por encaminhar a célula para a morte quando os defeitos não podem ser consertados. Já na doença de Creutzfeldt-Jakob a proteína alterada é o príon celular, molécula que se ancora na superfície externa das células e controla o trânsito de informações do meio externo para o interno. Em ambos os casos, a falha no enovelamento parece conferir à proteína alterada uma característica típica de agentes infecciosos tradicionais como os vírus e as bactérias: a capacidade de se autopropagar e infectar outras células.
A ideia de que versões deformadas de uma proteína podem causar doenças não é nova. Foi proposta nos anos 1980 pelo pesquisador norte-americano Stanley Prusiner para explicar a origem do grupo de enfermidades neurodegenerativas do qual fazem parte a doença de Creutzfeldt-Jakob e o mal da vaca louca – as encefalopatias espongiformes. Investigando o agente causador de uma encefalopatia que atinge as ovelhas, Prusiner não encontrou os vírus que esperava. Em vez disso, identificou apenas uma proteína defeituosa à qual chamou de príon (sigla de partícula proteinácea infecciosa) e formulou uma explicação de como os príons deformariam as proteínas saudáveis. Segundo essa hipótese, que rendeu a Prusiner um prêmio Nobel em 1997, o simples contato da molécula deformada com as proteínas normais é suficiente para induzir uma transformação na estrutura tridimensional delas. É um evento em cadeia que, uma vez iniciado, não se consegue deter, como pedras de dominó que tombam. Também é um efeito difícil de reverter. As proteínas defeituosas têm uma estrutura mais estável do que as saudáveis e aderem umas às outras, originando longas fibras tóxicas para os neurônios.
As evidências mais contundentes de que versões defeituosas da p53 podem atuar como príon – os pesquisadores dizem que elas têm ação prionoide – e induzir a remodelagem das proteínas saudáveis, fazendo-as perder sua função original, surgiram nos últimos dois anos. Em parceria com a equipe da geneticista Cláudia Moura-Gallo, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), o grupo de Silva analisou amostras de tumores de mama de 88 mulheres e verificou que na maioria dos casos havia agregados formados por moléculas defeituosas da p53, semelhantes aos agregados amiloides das doenças causadas por príon – essas fibras ou agregados também aparecem em outras enfermidades neurodegenerativas, como a doença de Parkinson e a de Alzheimer. Quase sempre as proteínas deformadas haviam sido geradas em decorrência de pequenas alterações no gene TP53, que contém a receita para a produção dessa proteína.
Se a ideia do grupo da UFRJ estiver correta, ela ajudará a entender o desenvolvimento dos tumores ditos espontâneos, que não são transmitidos de uma geração a outra e surgem em consequência de alterações genéticas no embrião já formado ou no indivíduo adulto. A ação prionoide da p53 seria uma boa explicação para os tumores espontâneos – a grande maioria dos casos de câncer –, em especial quando ocorre a chamada dominância negativa. “Nesse fenômeno biológico, a alteração de apenas uma das duas cópias de um gene já é suficiente para levar ao desenvolvimento de uma enfermidade”, explica Silva, que levantou a possibilidade no caso da p53 já em 2003, quando começou a estudar o enovelamento da proteína. Ele imagina ser possível usar as fibras de p53 em um teste, como marcador molecular de gravidade do câncer ou de prognóstico. E ainda que no futuro se torne possível interferir nesse mecanismo e tentar frear o desenvolvimento de alguns tumores.
Fonte: Revista Pesquisa Fapesp ( adaptado de "Quando tomba o guardião", por Ricardo Zorzetto)

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