Ciência Escatológica?

Pesquisadores internacionais reconstroem a dieta alimentar do homem de Neanderthal utilizando marcadores biológicos presentes nas fezes fossilizadas de antigos ocupantes de uma escavação na Espanha

Nem só de pesquisas salutares e ambientes salubres vive a ciência. Tem momentos que os cientistas tem que buscar soluções para as suas hipóteses pesquisando materiais, por assim dizer, "menos nobres", como as fezes, por exemplo. Relatei este fato numa postagem de fevereiro de 2013 ( veja A utilidade das fezes dos animais). Agora o assunto volta à tona (sem trocadilho). Pesquisadores americanos e espanhóis conseguiram reconstruir a dieta alimentar dos neandertais a partir do estudo de biomarcadores fecais. É, isso mesmo. Os cientistas investigaram o conteúdo encontrado em fósseis de fezes humanas achadas numa escavação no sítio arqueológico de El Salt, em Alicante, na Espanha, local sabidamente ocupado pelos neandertais há 50 mil anos.

A descoberta soou tão insólita que a Agência Reuters a noticiou assim Scatological science: oldest human poop fossils no laughing matter ( algo que pode ser traduzido livremente como Ciência escatológica: o mais antigo cocô fóssil humano não é pra brincadeiras). A reportagem começa assim: "Não ria, mas a descoberta do cocô humano mais antigo conhecido está oferecendo informações científicas valiosas sobre a vida dos neandertais que viveram na Espanha cerca de 50.000 anos atrás."
Piadas à parte, a descoberta foi publicada na PLos ONE, um conceituado periódico científico on-line de acesso aberto e repercutiu na BBC News e na própria Reuters, alem de merecer reportagem no O Globo
O estudo conduzido por pesquisadores do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), nos EUA, e da Universidade de La Laguna, na Espanha, tem como co-autor Roger Summons, professor de geobiologia do MIT. De acordo com os pesquisadores destas instituições, a dieta dos neandertais era mais variada do que se pensava e, embora contivesse muita carne, também incluía quantidades significativas de vegetais, tubérculos e nozes.

Há tempos os cientistas vêm tentando reconstruir a dieta dos neandertais, porém  muitos dos resultados apresentados até agora foram inconclusivos. Segundo O Globo "estudos anteriores, por exemplo, analisaram fragmentos de ossos de neandertais em busca de isótopos de carbono e nitrogênio que indicassem se eles comiam preferencialmente algum tipo de presa, como porcos no lugar de vacas, mas tais análises diferenciam apenas as fontes de proteínas e subestimam o consumo de plantas, o que contribuiu mais ainda para a imagem popular dos neandertais como sendo basicamente carnívoros."

De acordo com Ainara Sistiaga, estudante de graduação da Universidade de La Laguna que liderou a análise das fezes quando foi aluna-visitante no MIT, os microfósseis de plantas recentemente encontrados presos nos dentes de neandertais, não eram suficientes para constatar se a espécie tinha um estilo de vida mais complexo, incluindo a colheita e consumo de vegetais além de carne. Tal evidência também foi considerada inconclusiva, já que era possível tanto que os neandertais acabassem com estes restos nos seus dentes por meio do conteúdo do estômago de suas presas quanto pelo fato de muitas vezes usarem os dentes como ferramentas, aponta.

Diante deste fato, Sistiaga decidiu adotar uma abordagem mais direta. A pesquisadora e seus colegas coletaram amostras do solo do sítio arqueológico de EL Salt em diferentes camadas e as levaram ao laboratório no MIT, onde usaram diversos solventes para separar o material orgânico dos sedimentos. Então, Sistiaga buscou por marcadores biológicos que indicassem que parte deste material orgânico era proveniente de fezes humanas.
A equipe usou uma técnica chamada cromatografia gasosa para separar os produtos químicos contidos nas amostras antigas. Esta foi combinada com a espectrometria de massa para descobrir quais as moléculas estavam presentes e em que quantidades.
No caso, Sistiaga procurou por sinais de coprostanol, lipídio formado quando o colesterol proveniente da carne de animais é metabolizado no intestino. E como os humanos metabolizam mais colesterol que qualquer outro mamífero, altos níveis de coprostanol indicariam que as amostras eram de fezes humanas. Posteriormente, os pesquisadores usaram as mesmas técnicas para determinar as proporções de coprostanol relativas às de estigmastanol, subproduto do metabolismo de fitosterol, composto similar ao colesterol derivado do consumo de plantas (ver figura).
Embora as amostras analisadas contivessem grandes quantidades de coprostanol, evidência de uma dieta basicamente carnívora, duas delas também tinham os biomarcadores de plantas. Isso, segundo Sistiaga, indica um significativo consumo de vegetais pelos neandertais, já que, grama por grama, a carne contém muito mais colesterol do que as plantas têm fitosterol, sendo por isso necessário comer muito mais vegetais para que as fezes tenham mesmo pequenas quantidades de estigmastanol. Em outras palavras, diz a pesquisadora, apesar de a dieta dos neandertais parecer baseada primordialmente em carnes, ela também continha porções regulares de plantas, sejam tubérculos, frutas, vegetais ou nozes.
Sistiaga, Summons e seus colegas agora planejam usar as mesmas técnicas geoquímicas de busca por marcadores biológicos para analisar amostras de solo da Garganta de Olduvai, na Tanzânia. Apelidada de “Berço da Humanidade”, é nesta região da África que foram descobertos alguns dos fósseis mais antigos de hominídeos, datando de cerca de 1,8 milhão de anos.
Fontes: PLos ONE e O Globo

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