A Medicina Às Avessas

 Com a progressiva fragmentação do atendimento e no uso irrestrito da tecnologia diagnóstica e das novidades terapêuticas, é comum que o médico baseie o diagnóstico e o tratamento dos doentes somente em achados de exames. Até poucos anos atrás, os exames de laboratório e de imagem eram denominados “complementares”. Nos dias atuais, o que está se tornando cada vez mais complementar é a avaliação clínica e o exame físico do doente. 


A revista Carta Capital publicou esta semana uma entrevista com o professor emérito de Cirurgia da Faculdade de Medicina da USP, o Dr. Dario Birolini, um dos maiores estudiosos e críticos da evolução da medicina moderna. O Dr. Birolini escreveu o prefácio de um livro magnífico, lançado recentemente no Brasil, O Doente Imaginado, de Marco Carlo Bobbio (Editora Bamboo). Na entrevista, concedida ao colunista Ryad Younes, o Dr.Dario Birolini expôs a sua visão sobre a medicina atual e conversou sobre o livro.
No prefácio, ele diz que "o exercício da medicina nos dias atuais está se transformando em um desafio cada vez mais complexo. Nas últimas décadas ocorreu uma progressiva e devastadora fragmentação da profissão em inúmeras especialidades, fato que, se por um lado parece simplificar o exercício dos profissionais e sua atualização, por outro lado pode resultar em sérias repercussões negativas na atenção ao doente. Ao mesmo tempo, os extraordinários avanços tecnológicos resultaram em uma profunda e irreversível mudança da cultura, modificaram critérios de valor arraigados durante séculos e, ainda que tenham trazido inquestionáveis aprimoramentos, causaram
um verdadeiro tsunami de novas perspectivas nem sempre adequadas para o homo sapiens compreensíveis para o profissional de saúde. Um dos subprodutos da globalização é a divulgação irrestrita de informações nem sempre corretas, que resultam na criação de novas “doenças”, a assim denominada disease mongering, iniciativa obviamente motivada por uma série de razões altamente questionáveis.
Antigamente, refiro-me há meio século, o médico era considerado um verdadeiro “semideus”e suas decisões raramente eram contestadas. Nos dias atuais, com a progressiva expansão da assim chamada “medicina defensiva”, que eu denomino “medicina ofensiva”, ele passou a desempenhar um papel pífio. Sente-se obrigado a proteger- se de eventuais questionamentos, quando não de acusações, levantados pelos pacientes, não raramente orientados por advogados. Por estas razões, nos dias atuais, é comum que o médico deixe de tratar o doente e passe a tratar tão somente achados de exames. Além disso, influenciado por uma avalanche de informações intencionalmente falsas que lhe são oferecidas através da literatura, passa a adotar condutas ditadas por modismos e por interesses
de natureza econômica. Tornando-se vítima de guidelines, de protocolos que, ainda que aceitáveis como normas de âmbito geral, não levam em conta as peculiaridades dos doentes. Em outras palavras, esquece-se que cada ser humano é um ser humano único, com um perfil físico, intelectual,
social, econômico, cultural e religioso próprio."
 Na entrevista, o Dr. Birolini endossa essas últimas palavras, afirmando que "a espécie humana é constituída de seres complexos em seus aspectos fisiológicos. Por tal razão, o tratamento de numerosas doenças continua sendo um desafio. Não raramente, a adoção dessas novas modalidades terapêuticas, ainda que possa resultar no prolongamento da vida do doente, frequentemente resulta em piora da sua qualidade de vida."
Quando perguntado sobre o que o preocupa nos médicos de hoje e como vê a relação médico-paciente em 2014, O Dr. Birolini respondeu: "com a progressiva fragmentação do atendimento e no uso irrestrito da tecnologia diagnóstica e das novidades terapêuticas. É comum que o médico baseie o diagnóstico e o tratamento dos doentes somente em achados de exames. Até poucos anos atrás, os exames de laboratório e de imagem eram denominados 'complementares'. Nos dias atuais, o que está se tornando cada vez mais complementar é a avaliação clínica e o exame físico do doente. Por outro lado, o perfil do enfermo também mudou radicalmente. Em virtude da avalanche de informações, o paciente tornou-se 'impaciente'. Consulta o Dr. Google, faz seu próprio diagnóstico, procura um especialista e exige que este solicite exames e prescreva medicamentos, e, quanto mais novos, melhor. Não é incomum que o impaciente consulte vários especialistas que nem sequer conversam entre si. Uma das consequências é os impacientes se tornarem vítimas de 'achados de exames' e de efeitos colaterais. É o que eu denomino de 'síndrome da fragmentação'.
O autor do livro O Doente Imaginado, Marco Carlo Bobbio nasceu na Itália no ano de 1951. É medico cirurgião especializado em doenças cardiovasculares e estatística médica. Autor de vários livros que refletem sobre os aspectos sociais da saúde e prevenção de doenças, Bobbio atualmente é o diretor UOC de cardiologia do Hospital Santa Croce e Carle, em Cuneo. O Doente Imaginado é o primeiro dos seus livros a ser traduzido para a língua portuguesa no Brasil.
O entrevistador da Carta Capital perguntou ao Dr. Birolini se os  temas abordados no livro são pertinentes no Brasil ou só na Itália, terra do autor? A resposta: "As considerações que o dr. Marco Bobbio apresenta, de forma objetiva e honesta, valem para qualquer país e deveriam constituir-se em um foco de debates para o aprimoramento da assistência. Deveriam ser discutidas amplamente nas escolas de medicina, assim como em eventos médicos. Infelizmente, nem sempre o corpo docente das escolas médicas é integrado por profissionais devidamente qualificados. Nos últimos anos, a abertura indiscriminada de novas escolas médicas, em sua grande maioria privadas, resulta na concessão de diplomas a estudantes de formação questionável, mas que terão a liberdade de exercer a profissão. É óbvio que, ao exercê-la, tentarão compensar seu despreparo por meio do abuso de solicitação de exames e da prescrição de medicamentos 'da moda'. Os resultados são facilmente previsíveis: a qualidade do atendimento é deteriorada e seus custos aumentam de forma exponencial."
O Dr. Dario Birolini termina assim a entrevista: "Todos nós, profissionais de saúde ou não, precisamos meditar a respeito desses temas, discuti-los de forma clara e honesta, à procura de soluções viáveis para nossa realidade, que permitam respeitar o interesse dos doentes e incentivar o exercício correto da medicina. É fundamental que se volte a valorizar o cerne da medicina, que é a relação médico-paciente."

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